sábado, 19 de setembro de 2015

Usos e Costumes: Uma Doutrina do Homem ou de Deus?

É preciso ter muito equilíbrio
para definir o que é doutrina de
Deus e o que é costume do
homem para não tirar a
liberdade que nos é dada por
natureza e nem ofender a santa
natureza divina. O princípio
básico para isso é: "O que eu
faço ou deixo de fazer está ou
não agradando a Ele?"
    Diante de tantas polêmicas no meio cristão, essa é uma das que mais têm se destacado nos “ringues ministeriais”. De um lado, com muito peso, os mais tradicionais defendendo uma postura muitas vezes até radical dos fiéis e, de outro, aparentemente com bastante agilidade, os mais liberais apoiando mudanças, algumas até extravagantes na conduta dos mesmos. O que torna essa briga mais difícil é que todos usam a mesma arma: a Bíblia. Sendo assim, como juíza dessa luta, a quem ela declara como vencedor? Se a analisarmos cuidadosamente, ambos estão empatados e, mesmo longe da vitória, também não estão completamente errados. Não! Eu não estou procurando um jeito de ficar em cima do muro e agradar a todos! Estou apenas conseguindo enxergar que há exageros dos dois lados, enquanto que a Palavra de Deus exige de nós equilíbrio (Ec 7:16,17). Para prosseguir, não há como entendermos se o controle da igreja sobre a conduta pessoal de seus membros no que se refere às vestimentas, ao vocabulário e à própria visão sobre o mundo são legítimas ou não sem antes sabermos o significado da palavra doutrina.
    Segundo os dicionários da língua portuguesa, resumidamente, doutrina é o conjunto das ideias básicas contidas num sistema filosófico, político, religioso, econômico, etc.; um conjunto de princípios que servem de base para a definição de regras que, de certa forma, funcionam como lei em um determinado grupo de convívio. No que se refere à religião, principalmente no cristianismo, é a organização de um regulamento interno com dogmas[1] que definem um padrão de comportamento que valorize a ordem, a moral e os bons costumes perante a família, a Igreja e a sociedade como um todo de modo agradável a Deus, tendo como fundamento as escrituras por elas consideradas sagradas. Assim sendo, espera-se que todos os ensinamentos de uma igreja evangélica referentes à postura pessoal de seus frequentadores sejam fundamentados pela Bíblia. No entanto, é aí que começa um grande problema: a interpretação do Livro Sagrado depende de muito discernimento tanto espiritual quanto intelectual, e se não houver equilíbrio entre os dois, o resultado pode ser catastrófico. Pois o que temos visto, principalmente de uns tempos atrás, são comportamentos bizarros e até intolerantes por parte de muitos que pensam estar agradando ao Senhor agindo radicalmente (Cl 2:16-23), e também atitudes extremamente liberais que chegam a ser intoleráveis porque provocam escândalo ao Evangelho (Cl 2:8[2] [3] [4]).
    Os líderes mais tradicionalistas costumam associar doutrina ao autoritarismo como forma de manter controle sobre o povo, como se isso significasse santificação e tivesse ligação direta à conduta de acordo com o que eles ensinam como sendo determinações divinas; mas não é isso que as Escrituras ensinam: o termo traduzido em português como doutrina aparece 50 vezes na Bíblia, sendo 8 vezes no Antigo Testamento e 42 no Novo. Vejamos seus significados:
v Do hebraico basar, significando trazer novidades, dar notícia, publicar, pregar, anunciar; como, por exemplo, em 1º Samuel 4:17; 2º Samuel 1:20; Salmos 40:9 e Isaías 52:17.
v Do hebraico lecach, significando ensinamento, ensino, percepção, instrução, persuasão; como, por exemplo, em Deuteronômio 32:2, Jó 11:4, Provérbios 1:5 e Isaías 29:24.
v Do hebraico yacar, significando castigar, disciplinar, instruir, admoestar, corrigir; como, por exemplo, em Levítico 26:18, Deuteronômio 4:36, Provérbios 9:7 e Ezequiel 23:48.
v Do hebraico yarah, significando dirigir, ensinar, instruir, encaminhar, mostrar; como, por exemplo, em Gênesis 46:28, Êxodo 15:25, Deuteronômio 17:10, Salmos 27:11.
    Como pudemos constatar, realmente, doutrina possui, em alguns casos, o sentido de castigo ou correção; porém, na maioria das aplicações, essa expressão se refere a anunciar, pregar, mostrar ou ensinar. É óbvio que tudo isso consiste sim em ter uma conduta agradável a Deus, mas em toda a Bíblia, principalmente no Novo Testamento, não encontraremos nenhuma lista de regras concernentes a poder ou não usar isso ou aquilo, muito pelo contrário: se somos espirituais, nossa consciência é controlada pelo Espírito Santo (1ª Jo 3:20,21). No entanto, nos ensina também a obedecer nossos líderes (Hb 13:17,7), e é aí que muitos se perdem.
    No tocante às vestes, as ordens divinas que encontramos aparecem inseridas na Lei Mosaica[5] e se referem a homem não usar roupas de mulher e vice-versa (Dt 22:5), mostrando uma reprovação de Deus a qualquer ato que possa pelo menos insinuar uma condição de homossexualismo, e claras determinações contra a nudez (Êx 20:26; Gn 9:21-23), o que podemos entender também como uma alusão à sensualidade[6], o que, além de escândalo e desvalorização da própria pessoa, também pode provocar outros à prática do pecado tanto pela cobiça sexual quanto pelo incentivo aos demais a andarem da mesma forma. Como bem sabemos, a antiga Lei foi entregue aos israelitas e não temos que seguir à risca uma “constituição[7]” que foi feita para uma nação específica de acordo com a sua situação daquele momento; porém, bem sabemos também que a Palavra do Senhor é imutável e que devemos não aplicar o modo de viver do povo de Israel em nossa vida, mas sim respeitar os princípios morais ensinados nos mandamentos, os quais se confirmam na Nova Aliança (Ap 3:18).
    Mas o problema aí está no entendimento no momento da aplicação, pois os tradicionalistas acertam em seu cuidado com o corpo, o qual é templo do Espírito Santo (1ª Co 6:12-20), e aí temos que concordar que, principalmente no caso das mulheres, roupas demasiadamente apertadas, curtas ou transparentes desonram a Deus que não as criou para mostrar sua intimidade à homens que não sejam seus maridos, mas os mesmos radicalizam em estipular determinados tipos de roupa como pecaminosas. Por exemplo: dizem que uma mulher não pode usar calças compridas porque isso é roupa de homem, no entanto, se dermos para alguns desses senhores uma calça feminina, prontamente recusarão dizendo ser isso uma calça de mulher. E agora? De repente ela deixou de ser roupa de homem, mas também não pode ser usada porque é roupa de mulher? Ou seria o contrário? Essa conclusão parece, no mínimo, incoerente, não é mesmo? Continuando a lista de proibições, mencionam os adornos - colares, pulseiras, brincos: enfim, os penduricalhos de modo geral -, e, de fato, a Bíblia também fala disso (1ª Tm 2:9,10[8]); porém, referindo-se aos excessos porque isso representa orgulho e soberba, e também porque enfeites em exagero era uma característica própria das prostitutas, e havia ainda a questão da idolatria, a qual também era manifesta por meio de muitos desses ornamentos; mas não os proíbe por completo, o que significa que simples colares, pulseiras ou brincos de tamanho ou conteúdo moderados que não expressem falta de modéstia e nem permitam confundi-las com mulheres vulgares, e nem contenham imagem idólatras, não levarão ninguém à condenação. Convenhamos também que as saias e as maquiagens de algumas senhoras sacrossantíssimas até dentro da igreja provocam mais escândalos e desejos imorais nos homens do que calças bem ajustadas - não justas - que não definam o corpo e nem mostram as pernas. Da mesma forma aos homens: não há mandamentos bíblicos que os proíbam de usar bermudas, camisetas regatas ou demais roupas esportivas, ou mesmo deixar a barba crescer, desde que saibam se portar devidamente como cristãos, é claro (1ª Pe 3:3-5[9]).
    O problema da maioria dos ortodoxos[10] atuais é que as “doutrinas” de suas igrejas foram implantadas ainda nas primeiras décadas do século XX. Naquela época, determinados tipos de roupa eram comuns até mesmo na sociedade secular[11], então, as denominações evangélicas que surgiram, nada mais fizeram do que se adequar ao padrão de comportamento daquele período em cada país que chegavam. Com o tempo, as tendências de moda foram mudando e o próprio mundo deixou de ter um comportamento que fosse totalmente aceitável pelo padrão cristão. Devido a isso, houve uma necessidade de que os líderes se preocupassem em manter a diferença não permitindo aos seus liderados uma postura que ferisse os bons costumes ensinados na Palavra. Só que muitos se excederam nesse cuidado não tendo discernimento para entender que a Igreja pode sim acompanhar a modernidade até o ponto que esta não fira a moralidade (Jo 17:15-17; At 5:28,29), pois nem tudo é indecente desde que saibamos a diferença entre o certo e o errado. Uma visão limitada transformou alguns pastores em ditadores, os quais “transformaram” as regras antigas em lei e praticamente as classificaram como sagradas. Tais equívocos de interpretação os levavam - e ainda levam alguns - a expor membros de suas denominações ao constrangimento aplicando-lhes disciplina[12] por atos tão simples, pelos quais muitos não aguentaram e saíram da igreja sentindo-se incompreendidos e injustiçados, principalmente quando conhecem o conteúdo bíblico (At 15:28,29[13]); e não nos esqueçamos também que o conteúdo bíblico alerta a nos abstermos da fornicação, a qual também pode ser estimulada pelo tipo de roupa que se usa.
    Sem dúvida nenhuma, a liderança da igreja é sim instituída por Deus (Ef 4:10-12) e deve realmente ser obedecida. Além do mais, o que muitos não entendem é que, embora haja alguns equívocos de interpretação e exageros no rigor de sua aplicação, a intenção da maioria dos pastores não é abusar da autoridade, mas sim zelar pelas almas das ovelhas, pois acreditam que assim estão garantindo sua segurança na caminhada até o céu. E, de fato, ainda que tais exigências não sejam mandamentos divinos, quem os obedecer nada estará perdendo com isso. Aos que não concordam, o meio mais racional de lidar com a situação é escolher uma denominação de acordo com aquilo que ache mais justo para não viver em murmuração, assim estando em pecado de rebeldia (Am 3:3; 1ª Sm 15:23; At 15:37-41).
    Não estou aqui me posicionando contra e nem a favor a isso ou aquilo, mas apenas deixando claro que o importante é sabermos muitas das exigências que fazem parte do regulamento interno da maioria das igrejas não se trata de santificação, mas de uma postura adotada por sua liderança que acredita ser essa uma forma de agradar ao Senhor. Se você muitas vezes aceita trabalhar com um uniforme imposto por sua empresa, o qual você acha ridículo ou inadequado, e nem por isso pede demissão, por que não respeitar aqueles os quais pode-se perceber nitidamente que, estando errados ou não, apenas estipulam regras que visam elevar a sua vida espiritual? No entanto, se optar por uma associação ministerial mais aberta e modernizada, também não pode ser censurado por isso; porém, certifique-se de que a liberdade por eles pregada esteja verdadeiramente fundamentada na Bíblia Sagrada (1ª Jo 4:1; Mt 7:15,16). Para concluir, lembre-se sempre de uma coisa: Deus não faz acepção de pessoas (Rm 2:11), mas isso não significa que Ele não queira que elas mudem (Rm 12:1,2).



[1]Dogma: Ponto ou princípio de fé definido por uma Igreja. Conjunto das doutrinas fundamentais do cristianismo. Cada um dos pontos fundamentais de qualquer crença religiosa. Fundamento ou pontos capitais de qualquer sistema ou doutrina. Proposição apresentada como incontestável e indiscutível.
[2]Filosofia: Estudo geral sobre a natureza de todas as coisas e suas relações entre si; os valores, o sentido, os fatos e princípios gerais da existência, bem como a conduta e destino do homem. Sabedoria humana em contraste com o conhecimento revelado por Deus (Cl 2:8). Filósofo era uma pessoa que procurava compreender e explicar o sentido da experiência humana (At 17:18).
[3]Sutileza: Astúcia. Esperteza; habilidade em enganar.
[4]Rudimento: Fundamento; princípio.
[5]Leia Mosaica: Lei de Moisés: A Lei de Deus entregue por Moisés ao povo de Israel.
[6]Sensualidade: Lascívia (Conduta vergonhosa, como imoralidade sexual, libertinagem, luxúria). Atos modos ou gestos que despertam em outras pessoas desejos relacionados à pratica sexual. Estímulo ao apetite carnal.
[7]Constituição: Lei fundamental que regula a organização política de uma nação soberana; carta constitucional. Ordenação, estatuto, regra.
[8]Pudor: Sentimento de pejo ou vergonha, produzido por atos ou coisas que firam a decência, a honestidade ou a modéstia. Vergonha. Pundonor, recato, seriedade.
[9]Frisado: Trançado.
[10]Ortodoxo: Quem age conforme a uma doutrina definida; quem é rígido em suas convicções.
[11]Secular: Pertencente ou relativo a século. Que se observa ou se faz de século a século. Em sentido religioso, se refere àquilo que não é espiritual ou às pessoas mais ligadas às coisas relacionadas ao mundo do que as espirituais.
[12]Disciplina: Pessoa que segue os ensinamentos de um mestre. No Novo Testamento se refere tanto aos Apóstolos (Mt 10:1) como aos cristãos em geral (At 6:1). Em linguagem ministerial, é o período em que uma pessoa, após cometer um grave pecado, fica na igreja afastada de qualquer tipo de cargo, geralmente sem o direito de participar da Ceia e sem poder ministrar a Palavra ou participar de grupos de louvor; é o popular “ficar de banco”; seu tempo de pena varia de acordo com a determinação do corpo administrativo de cada denominação ou congregação local; normalmente se aplica a membros batizados nas águas.
[13]Fornicação: Relação sexual ilícita (At 15:29).

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