Diante de tantas polêmicas no meio cristão,
essa é uma das que mais têm se destacado nos “ringues ministeriais”. De um
lado, com muito peso, os mais tradicionais defendendo uma postura muitas vezes
até radical dos fiéis e, de outro, aparentemente com bastante agilidade, os
mais liberais apoiando mudanças, algumas até extravagantes na conduta dos
mesmos. O que torna essa briga mais difícil é que todos usam a mesma arma: a
Bíblia. Sendo assim, como juíza dessa luta, a quem ela declara como vencedor?
Se a analisarmos cuidadosamente, ambos estão empatados e, mesmo longe da
vitória, também não estão completamente errados. Não! Eu não estou procurando
um jeito de ficar em cima do muro e agradar a todos! Estou apenas conseguindo
enxergar que há exageros dos dois lados, enquanto que a Palavra de Deus exige
de nós equilíbrio (Ec 7:16,17). Para prosseguir, não há como entendermos se o controle da
igreja sobre a conduta pessoal de seus membros no que se refere às vestimentas,
ao vocabulário e à própria visão sobre o mundo são legítimas ou não sem antes
sabermos o significado da palavra doutrina.
Segundo os dicionários da língua
portuguesa, resumidamente, doutrina é
o conjunto das ideias básicas contidas num sistema filosófico, político,
religioso, econômico, etc.; um conjunto de princípios que servem de base para a
definição de regras que, de certa forma, funcionam como lei em um determinado
grupo de convívio. No que se refere à religião, principalmente no cristianismo,
é a organização de um regulamento interno com dogmas[1] que definem um padrão de comportamento que valorize a ordem, a
moral e os bons costumes perante a família, a Igreja e a sociedade como um todo
de modo agradável a Deus, tendo como fundamento as escrituras por elas
consideradas sagradas. Assim sendo, espera-se que todos os ensinamentos de uma
igreja evangélica referentes à postura pessoal de seus frequentadores sejam
fundamentados pela Bíblia. No entanto, é aí que começa um grande problema: a
interpretação do Livro Sagrado depende de muito discernimento tanto espiritual
quanto intelectual, e se não houver equilíbrio entre os dois, o resultado pode
ser catastrófico. Pois o que temos visto, principalmente de uns tempos atrás,
são comportamentos bizarros e até intolerantes por parte de muitos que pensam
estar agradando ao Senhor agindo radicalmente (Cl 2:16-23), e também atitudes extremamente liberais que chegam a ser
intoleráveis porque provocam escândalo ao Evangelho (Cl 2:8[2] [3] [4]).
Os líderes mais tradicionalistas costumam
associar doutrina ao autoritarismo como forma de manter controle sobre o povo,
como se isso significasse santificação
e tivesse ligação direta à conduta de acordo com o que eles ensinam como sendo
determinações divinas; mas não é isso que as Escrituras ensinam: o termo
traduzido em português como doutrina
aparece 50 vezes na Bíblia, sendo 8 vezes no Antigo Testamento e 42 no Novo. Vejamos
seus significados:
v Do hebraico basar, significando trazer
novidades, dar notícia, publicar, pregar, anunciar; como,
por exemplo, em 1º Samuel 4:17; 2º Samuel 1:20; Salmos 40:9 e Isaías 52:17.
v Do hebraico lecach, significando ensinamento, ensino, percepção, instrução, persuasão; como, por exemplo, em Deuteronômio
32:2, Jó 11:4, Provérbios 1:5 e Isaías 29:24.
v Do hebraico yacar, significando castigar,
disciplinar, instruir, admoestar, corrigir; como, por exemplo, em Levítico
26:18, Deuteronômio 4:36, Provérbios 9:7 e Ezequiel 23:48.
v Do hebraico yarah, significando dirigir,
ensinar, instruir, encaminhar, mostrar; como, por exemplo, em Gênesis
46:28, Êxodo 15:25, Deuteronômio 17:10, Salmos 27:11.
Como pudemos constatar, realmente, doutrina possui, em alguns casos, o
sentido de castigo ou correção; porém, na maioria das aplicações, essa
expressão se refere a anunciar, pregar, mostrar ou ensinar. É óbvio que tudo
isso consiste sim em ter uma conduta agradável a Deus, mas em toda a Bíblia,
principalmente no Novo Testamento, não encontraremos nenhuma lista de regras
concernentes a poder ou não usar isso ou aquilo, muito pelo contrário: se somos
espirituais, nossa consciência é controlada pelo Espírito Santo (1ª Jo 3:20,21). No entanto, nos ensina também
a obedecer nossos líderes (Hb 13:17,7), e é aí que muitos se perdem.
No tocante às vestes, as ordens divinas que
encontramos aparecem inseridas na Lei Mosaica[5] e se referem a homem não usar roupas de mulher e vice-versa (Dt 22:5), mostrando uma reprovação de
Deus a qualquer ato que possa pelo menos insinuar uma condição de
homossexualismo, e claras determinações contra a nudez (Êx 20:26; Gn 9:21-23), o que podemos entender também como
uma alusão à sensualidade[6], o que, além de escândalo e desvalorização da própria pessoa,
também pode provocar outros à prática do pecado tanto pela cobiça sexual quanto
pelo incentivo aos demais a andarem da mesma forma. Como bem sabemos, a antiga
Lei foi entregue aos israelitas e não temos que seguir à risca uma
“constituição[7]” que foi feita para uma nação específica de acordo com a sua
situação daquele momento; porém, bem sabemos também que a Palavra do Senhor é
imutável e que devemos não aplicar o modo de viver do povo de Israel em nossa
vida, mas sim respeitar os princípios morais ensinados nos mandamentos, os
quais se confirmam na Nova Aliança (Ap 3:18).
Mas o problema aí está no entendimento no
momento da aplicação, pois os tradicionalistas acertam em seu cuidado com o
corpo, o qual é templo do Espírito Santo (1ª Co 6:12-20), e aí temos que concordar que, principalmente no caso das
mulheres, roupas demasiadamente apertadas, curtas ou transparentes desonram a
Deus que não as criou para mostrar sua intimidade à homens que não sejam seus maridos,
mas os mesmos radicalizam em estipular determinados tipos de roupa como
pecaminosas. Por exemplo: dizem que uma mulher não pode usar calças compridas
porque isso é roupa de homem, no entanto, se dermos para alguns desses senhores
uma calça feminina, prontamente recusarão dizendo ser isso uma calça de mulher.
E agora? De repente ela deixou de ser roupa de homem, mas também não pode ser
usada porque é roupa de mulher? Ou seria o contrário? Essa conclusão parece, no mínimo, incoerente,
não é mesmo? Continuando a lista de proibições, mencionam os adornos - colares, pulseiras, brincos: enfim, os
penduricalhos de modo geral -, e, de fato, a Bíblia também fala disso (1ª Tm 2:9,10[8]); porém, referindo-se aos excessos porque isso representa
orgulho e soberba, e também porque enfeites em exagero era uma característica
própria das prostitutas, e havia ainda a questão da idolatria, a qual também
era manifesta por meio de muitos desses ornamentos; mas não os proíbe por
completo, o que significa que simples colares, pulseiras ou brincos de tamanho
ou conteúdo moderados que não expressem falta de modéstia e nem permitam
confundi-las com mulheres vulgares, e nem contenham imagem idólatras, não levarão ninguém à condenação.
Convenhamos também que as saias e as maquiagens de algumas senhoras sacrossantíssimas
até dentro da igreja provocam mais escândalos e desejos imorais nos homens do
que calças bem ajustadas - não justas
- que não definam o corpo e nem mostram as pernas. Da mesma forma aos homens:
não há mandamentos bíblicos que os proíbam de usar bermudas, camisetas regatas
ou demais roupas esportivas, ou mesmo deixar a barba crescer, desde que saibam
se portar devidamente como cristãos, é claro (1ª Pe 3:3-5[9]).
O problema da maioria dos ortodoxos[10] atuais é que as “doutrinas” de suas igrejas foram implantadas
ainda nas primeiras décadas do século XX. Naquela época, determinados tipos de
roupa eram comuns até mesmo na sociedade secular[11], então, as denominações evangélicas que surgiram, nada mais
fizeram do que se adequar ao padrão de comportamento daquele período em cada
país que chegavam. Com o tempo, as tendências de moda foram mudando e o próprio
mundo deixou de ter um comportamento que fosse totalmente aceitável pelo padrão
cristão. Devido a isso, houve uma necessidade de que os líderes se preocupassem
em manter a diferença não permitindo aos seus liderados uma postura que ferisse
os bons costumes ensinados na Palavra. Só que muitos se excederam nesse cuidado
não tendo discernimento para entender que a Igreja pode sim acompanhar a
modernidade até o ponto que esta não fira a moralidade (Jo 17:15-17; At 5:28,29), pois nem tudo é indecente
desde que saibamos a diferença entre o certo e o errado. Uma visão limitada
transformou alguns pastores em ditadores, os quais “transformaram” as regras
antigas em lei e praticamente as classificaram como sagradas. Tais equívocos de
interpretação os levavam - e ainda levam
alguns - a expor membros de suas denominações ao constrangimento
aplicando-lhes disciplina[12] por atos tão simples, pelos quais muitos não aguentaram e
saíram da igreja sentindo-se incompreendidos e injustiçados, principalmente
quando conhecem o conteúdo bíblico (At 15:28,29[13]); e não nos esqueçamos também que o conteúdo bíblico alerta a
nos abstermos da fornicação, a qual também pode ser estimulada pelo tipo de
roupa que se usa.
Sem dúvida nenhuma, a liderança da igreja é
sim instituída por Deus (Ef 4:10-12) e deve realmente ser obedecida. Além do mais, o que muitos não
entendem é que, embora haja alguns equívocos de interpretação e exageros no rigor
de sua aplicação, a intenção da maioria dos pastores não é abusar da
autoridade, mas sim zelar pelas almas das ovelhas, pois acreditam que assim
estão garantindo sua segurança na caminhada até o céu. E, de fato, ainda que
tais exigências não sejam mandamentos divinos, quem os obedecer nada estará
perdendo com isso. Aos que não concordam, o meio mais racional de lidar com a
situação é escolher uma denominação de acordo com aquilo que ache mais justo
para não viver em murmuração, assim estando em pecado de rebeldia (Am 3:3; 1ª Sm 15:23; At 15:37-41).
Não estou
aqui me posicionando contra e nem a favor a isso ou aquilo, mas apenas deixando
claro que o importante é sabermos muitas das exigências que fazem parte do
regulamento interno da maioria das igrejas não se trata de santificação, mas de
uma postura adotada por sua liderança que acredita ser essa uma forma de
agradar ao Senhor. Se você muitas vezes aceita trabalhar com um uniforme
imposto por sua empresa, o qual você acha ridículo ou inadequado, e nem por
isso pede demissão, por que não respeitar aqueles os quais pode-se perceber
nitidamente que, estando errados ou não, apenas estipulam regras que visam
elevar a sua vida espiritual? No entanto, se optar por uma associação
ministerial mais aberta e modernizada, também não pode ser censurado por isso;
porém, certifique-se de que a liberdade por eles pregada esteja verdadeiramente
fundamentada na Bíblia Sagrada (1ª Jo 4:1; Mt 7:15,16).
Para concluir, lembre-se sempre de uma coisa: Deus não faz acepção de pessoas (Rm 2:11), mas isso não significa que Ele não queira que elas mudem (Rm 12:1,2).
[1]Dogma: Ponto ou princípio de fé definido por uma Igreja. Conjunto das doutrinas
fundamentais do cristianismo. Cada um dos pontos fundamentais de qualquer
crença religiosa. Fundamento ou pontos capitais de qualquer sistema ou
doutrina. Proposição apresentada como incontestável e indiscutível.
[2]Filosofia: Estudo geral sobre a natureza de
todas as coisas e suas relações entre si; os valores, o sentido, os fatos e
princípios gerais da existência, bem como a conduta e destino do homem.
Sabedoria humana em contraste com o conhecimento revelado por Deus (Cl 2:8).
Filósofo era uma pessoa que procurava compreender e explicar o sentido da
experiência humana (At 17:18).
[3]Sutileza: Astúcia. Esperteza; habilidade em
enganar.
[4]Rudimento: Fundamento; princípio.
[5]Leia Mosaica: Lei de Moisés: A Lei de Deus entregue
por Moisés ao povo de Israel.
[6]Sensualidade: Lascívia (Conduta vergonhosa, como
imoralidade sexual, libertinagem, luxúria). Atos modos ou gestos que despertam
em outras pessoas desejos relacionados à pratica sexual. Estímulo ao apetite
carnal.
[7]Constituição: Lei fundamental que regula a organização política de uma nação soberana;
carta constitucional. Ordenação, estatuto, regra.
[8]Pudor: Sentimento de pejo ou vergonha, produzido por atos ou coisas que firam
a decência, a honestidade ou a modéstia. Vergonha. Pundonor, recato, seriedade.
[9]Frisado: Trançado.
[10]Ortodoxo: Quem
age conforme a uma doutrina definida; quem é rígido em suas convicções.
[11]Secular: Pertencente ou relativo a século. Que se observa ou se faz de século a
século. Em sentido religioso, se refere àquilo que não é espiritual ou às
pessoas mais ligadas às coisas relacionadas ao mundo do que as espirituais.
[12]Disciplina: Pessoa que segue os ensinamentos de
um mestre. No Novo Testamento se refere tanto aos Apóstolos (Mt 10:1) como aos
cristãos em geral (At 6:1). Em linguagem ministerial, é o período em que uma
pessoa, após cometer um grave pecado, fica na igreja afastada de qualquer tipo
de cargo, geralmente sem o direito de participar da Ceia e sem poder ministrar
a Palavra ou participar de grupos de louvor; é o popular “ficar de banco”; seu
tempo de pena varia de acordo com a determinação do corpo administrativo de
cada denominação ou congregação local; normalmente se aplica a membros
batizados nas águas.
[13]Fornicação: Relação sexual ilícita (At 15:29).
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